7 de jun. de 2012

Calada da noite


Alguns gatos brincavam num beco escuro de uma cidade qualquer. Reviravam lixo, lambiam o filete de água do chão e organizavam, entre si, uma ordem hierárquica de quem faz o quê. Mas, como bons gatos, cada um acabou fazendo o que bem quis. Como bons gatos, desejam a noite e tudo o que ela pode lhes proporcionar.

A noite promete. Afinal, como dizem, todos os gatos são pardos quando se é noite. E é nesse escuro, nesse lado sombrio da noite - e da vida de um gato - que se esconde o seu lado mais traiçoeiro. Como um joguete saramaguiano, os gatos brincam de cegos. Mas todos sabem muito bem que gatos enxergam no escuro.

Um deles enxergou. Mais do que devia, até. Enxergou com os olhos, com as patas, com os bigodes e com o coração. Tentou se juntar ao bando, mas era branco demais para se passar por pardo. Foi revirar lixo sozinho.

E quando o gato sai...

Podia ouvir o ronronar dos outros gatos. Estavam menos ariscos. Seria o gato branco o causador de tanta algazarra? Resolveu espiar e foi traído pela escuridão: um carro o atropelou no exato momento em que ele saía do beco.

A curiosidade matou o gato branco.

A noite se foi. Os gatos juntaram-se ao corpo do gato branco tingido de sangue e estirado no asfalto escuro. Os olhos, dourados, mantinham-se esbugalhados pelo choque. Alvo-negro-rubro-áureo: tão disforme, tão poético, tão clichê quanto uma padronagem qualquer, que desperta-se subitamente nas brumas do dia seguinte.

Durma bem, gato branco. E, quando acordar, lembre-se que outros gatos o esperam no beco, mas que gato escaldado tem medo de água fria.

***

- Quem está correndo atrás dela?
- Ele!
- E quem está correndo atrás dele?
- Eu!
- E quem está correndo atrás de você?
- Ninguém...

(diálogo entre Julia Roberts e Rupert Everett no filme "O casamento do meu melhor amigo")

***

É vida que segue.